Eles
surgem do escuro. Não, eles não surgem, nós os fazemos surgir, com nossas
lanternas. Caminham pelas ruas, devagar, sem direção. Eles não são organizados,
não usam uniformes, mas até parecem usar, pois não consigo lembrar de uma roupa
específica apenas de blusas, saias e calças sujas, sempre iguais.
Vejo três deles comendo algo,
enquanto passamos em nossos tanques, devagar. Os três estão com os pés
enterrados num lodo da valeta que desfila a céu aberto pelas ruas destruídas,
desorganizadas e sujas. Eles não se importam mais com o cheiro, nem com a
gente, o que interessa é a comida.
Perto de nossa base, quando paramos, eles vêm em
nossa direção. Única oportunidade que alguns deles têm de ver comida fresca.
E
quando eu quero dormir, eu fico deitado e penso e não consigo. Nesse momento
não tenho medo deles. A base militar é suprida de comida e armas, e temos
muitos homens por aqui. Sempre saímos em tanques caminhões ou nos jipes mais
modernos. Mas eu tenho medo de que um dia eles venham em grupo e talvez eu
tenha que matar. Um homem qualquer, uma criança, uma mulher.
É
estranho como não consigo individualizar. São sempre eles, lembro em blocos de
gente andando como num cardume. Como numa dança. A dança dos zumbis. Cada
movimento em conjunto, coreografado, cada passo da dança tem um significado. O
passo inicial é com a cabeça: leve movimento trazendo o olhar até nós. O
movimento de cabeça tem a ver com a posição deles: os que estão mais virados
para nós mexem menos, os que estão de costas parecem que viram cento e oitenta
graus suas cabeças. Depois da virada de cabeça, por atenção, o tronco e os
membros superiores se projetam em pulsão. Vejo ali os quereres, os desejos.
Nesse ponto eu vejo vida. Me iludo com uma vida. Eles tem quereres como todos
nós temos. Quando fixo olhar em um menino ou em uma mulher chego a lembrar da
minha mulher e de meu filho, passa em segundos a imagem do encontro na
faculdade, o amor, a vida construída a dois, a minha ida para o exército, as
mudanças de cidade, o nascimento do meu filho. Qualquer um ali um dia pode ter
tido uma vida parecida assim. Mas no terceiro movimento da dança sinto a música
grave da orquestra. O suspense, o “algo está errado”, o “algo vai acontecer”.
Os quadris voltando-se para nós. Desejo sexual poderia ser, se eles sentissem.
Mas representa em mim a mudança de tom. Da lembrança de vida e vivências boas
de minha família, sinto o medo por suas dores. Minha morte iminente como
provocadora da dor de minha mulher e filho. E eu olho para um guri ou uma
mulher e eles já não são. São apenas parte do corpo de dança e executam a
coreografia da morte. E os próximos movimentos da dança são de caminhada e de
movimentos sempre em nossa direção e com os braços levantados para nós.
Coreografia da súplica, coreografia da fome.
Acho
que uns quinze anos antes eu tinha visto aquele mesmo povo pela televisão e
sempre quis conhecer. Mas aquele que eu quis conhecer não existe mais. Quinze
anos atrás eles dançavam outra dança. Eles dançavam e cantavam todos juntos.
Sorriam. Eu vi a dança como a marca do povo. Eles dançavam, de uma maneira que
a minha gente não faz. Não temos uma dança de vitória, de luta. Mais uma vez,
ao tentar lembrar deles naquela época, vejo um grande corpo de baile e a
alegria da liberdade. Era a coreografia da liberdade. A mesma coreografia, que
quase nos mesmos dias vi Mandela dançar num palanque, por sua liberdade e por
chegar com seu povo ao poder.
Quinze
anos atrás o povo do Haiti cantava e dançava sua liberdade pela volta do
presidente Jean Bertrand Aristide. Agora eles dançam a coreografia do
desespero, a coreografia da fome, ao esticar seus braços ao meu amigo tenente
Domingues que sempre traz comida para eles.
Sou
plateia dessa dança. De cima de um caminhão do exército brasileiro, cheio de
armas e comida eu olho e não vejo a dança que eu quis ver. Eu olho e vejo a
dança que não quero e me faz ter medo. Eu olho e tenho medo de ter medo e de me
deixar disparar. E matar.