sexta-feira, 31 de maio de 2013

O homem que o guri se tornou


Pela fresta da porta. Espia.
O irmão dorme, igualzinho como ele vai fazer em tantos outros momentos, inclusive de tensão e medo. Na verdade, o irmão dorme por estar alheio aos sentimentos de tensão e medo.
Por uns vinte anos mais eles vão dormir no mesmo quarto. E muitas, inúmeras outras noites será assim: o irmão mais velho dorme, despreocupado, o mais novo em vigília, pensa, pensa, teme ou simplesmente não vê o sono chegar.
O guri mais novo, certamente sabia naquele dia, mas esqueceu depois, e foi relembrado ainda mais tarde, de que era um domingo, fim de noite.
O pai e a mãe estavam recostados na cama, assistindo televisão. Também anos mais tarde, vai ser informado que na tevê era exibido um filme de Chaplin, já que isso ele não conseguia ver pela fresta da porta.
Alguma coisa passou na cabeça do guri, mas essa não é uma lembrança que tenha resistido ao tempo, nem é um dos acontecimentos que poderão ser informados anos mais tarde. Ainda assim, alguma ideia, ou conceito, ou imagem, ou palavra (ainda que ele não entendesse que as palavras poderiam ser marcadas em papel), alguma coisa enfim, alguma coisa passou na cabeça do guri.
Pode ser que a criança pense como o adulto pensa no sonho: uma lógica que faz sentido em sonho, mas é ininteligível quando desperto. Alguma coisa devia fazer sentido para o guri, ainda que para o homem que ele se tornou mais tarde qualquer lógica que ele ainda lembrasse (mas já não lembra) pareceria com aquela dos sonhos. Quando o guri resolveu não aparecer na porta, não ir dizer para a mãe e para o pai que não conseguia dormir, ou mesmo quando ele decidiu não ir até o irmão e ficar chamando pra irem brincar juntos, quando o guri fez isso, alguma coisa ele tinha na cabeça.
Se o guri tivesse tido coragem, poderia ter andado pela casa. A casa antiga, daquelas de teto alto, janelas gigantes e portas imensas, tudo isso na perspectiva não só do guri, mas de qualquer adulto. Se o guri tivesse sido impetuoso, poderia ter ido espiar por todas as outras frestas de portas, à procura de um monstro (mas ele não temia, talvez não conhecesse monstros), à procura de fantasmas (com certeza a casa deveria ter um ou dois, ainda que fossem tranquilos) ou mesmo à procura do sono. Se o guri quisesse, poderia ter ido ao banheiro, chegado até a janela de veneziana que havia ali e ficava aberta, janela que dava para o pátio interno onde ficava um algibe (um negócio velho e de nome horrível que não passa de um poço de água). Se o guri fosse corajoso, destemido, curioso, impetuoso, ou mesmo muito idiota, poderia até ter subido no algibe e ter se jogado lá dentro do poço.
Se o guri fosse outra coisa que ele não era, poderia ter feito um monte de outras coisas, inclusive o que fez seu irmão: ter ficado quieto na cama esperando o sono chegar. Mas o guri era o que era e por isso colocou o bracinho pra dentro do quarto do pai e da mãe e deu um tchauzinho. Depois olhou rapidamente pela fresta e viu o pai e a mãe rindo e falando alguma coisa sobre o aparecimento do pequeno braço. O guri se divertiu e fez de novo. E algumas outras vezes. Até esquecer. Esse esquecer é do homem que o guri se tornou. Pois em algum momento o guri se sentou atrás da porta, e dormiu sentado. A prova está lá, em uma fotografia num dos álbuns que a mãe dele ainda guarda. O homem que o guri se tornou ainda brinca com a mãe por ela o ter deixado ali, de pijaminha de short e física, sentado todo torto no tabuão do quarto, enquanto ela ia buscar a máquina fotográfica para a foto. O guri não lembra, mas ele era eu.