Pela fresta
da porta. Espia.
O irmão
dorme, igualzinho como ele vai fazer em tantos outros momentos, inclusive de
tensão e medo. Na verdade, o irmão dorme por estar alheio aos sentimentos de
tensão e medo.
Por uns vinte
anos mais eles vão dormir no mesmo quarto. E muitas, inúmeras outras noites
será assim: o irmão mais velho dorme, despreocupado, o mais novo em vigília,
pensa, pensa, teme ou simplesmente não vê o sono chegar.
O guri mais
novo, certamente sabia naquele dia, mas esqueceu depois, e foi relembrado ainda
mais tarde, de que era um domingo, fim de noite.
O pai e a mãe
estavam recostados na cama, assistindo televisão. Também anos mais tarde, vai
ser informado que na tevê era exibido um filme de Chaplin, já que isso ele não
conseguia ver pela fresta da porta.
Alguma coisa
passou na cabeça do guri, mas essa não é uma lembrança que tenha resistido ao
tempo, nem é um dos acontecimentos que poderão ser informados anos mais tarde.
Ainda assim, alguma ideia, ou conceito, ou imagem, ou palavra (ainda que ele
não entendesse que as palavras poderiam ser marcadas em papel), alguma coisa
enfim, alguma coisa passou na cabeça do guri.
Pode ser que
a criança pense como o adulto pensa no sonho: uma lógica que faz sentido em
sonho, mas é ininteligível quando desperto. Alguma coisa devia fazer sentido
para o guri, ainda que para o homem que ele se tornou mais tarde qualquer
lógica que ele ainda lembrasse (mas já não lembra) pareceria com aquela dos
sonhos. Quando o guri resolveu não aparecer na porta, não ir dizer para a mãe e
para o pai que não conseguia dormir, ou mesmo quando ele decidiu não ir até o
irmão e ficar chamando pra irem brincar juntos, quando o guri fez isso, alguma
coisa ele tinha na cabeça.
Se o guri
tivesse tido coragem, poderia ter andado pela casa. A casa antiga, daquelas de
teto alto, janelas gigantes e portas imensas, tudo isso na perspectiva não só
do guri, mas de qualquer adulto. Se o guri tivesse sido impetuoso, poderia ter
ido espiar por todas as outras frestas de portas, à procura de um monstro (mas
ele não temia, talvez não conhecesse monstros), à procura de fantasmas (com
certeza a casa deveria ter um ou dois, ainda que fossem tranquilos) ou mesmo à
procura do sono. Se o guri quisesse, poderia ter ido ao banheiro, chegado até a
janela de veneziana que havia ali e ficava aberta, janela que dava para o pátio
interno onde ficava um algibe (um negócio velho e de nome horrível que não
passa de um poço de água). Se o guri fosse corajoso, destemido, curioso,
impetuoso, ou mesmo muito idiota, poderia até ter subido no algibe e ter se
jogado lá dentro do poço.
Se o guri
fosse outra coisa que ele não era, poderia ter feito um monte de outras coisas,
inclusive o que fez seu irmão: ter ficado quieto na cama esperando o sono
chegar. Mas o guri era o que era e por isso colocou o bracinho pra dentro do
quarto do pai e da mãe e deu um tchauzinho. Depois olhou rapidamente pela
fresta e viu o pai e a mãe rindo e falando alguma coisa sobre o aparecimento do
pequeno braço. O guri se divertiu e fez de novo. E algumas outras vezes. Até
esquecer. Esse esquecer é do homem que o guri se tornou. Pois em algum momento
o guri se sentou atrás da porta, e dormiu sentado. A prova está lá, em uma
fotografia num dos álbuns que a mãe dele ainda guarda. O homem que o guri se
tornou ainda brinca com a mãe por ela o ter deixado ali, de pijaminha de short
e física, sentado todo torto no tabuão do quarto, enquanto ela ia buscar a
máquina fotográfica para a foto. O guri não lembra, mas ele era eu.
Dormiu sentado! Que cena bonita e que boa reflexão. :) Agora deixa eu confundir o autor com o narrador: mostra a foto!
ResponderExcluirTem a foto mesmo! Vou pedir para a mãe achar. Esse exercício proposto pelo Kiefer era de buscar uma lembrança na infância (era pra ser a mais antiga, essa não é a minha mais antiga, mas a antiga mais legal, rs) Em breve: a foto.
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