segunda-feira, 3 de junho de 2013

A dança dos Zumbis

         Eles surgem do escuro. Não, eles não surgem, nós os fazemos surgir, com nossas lanternas. Caminham pelas ruas, devagar, sem direção. Eles não são organizados, não usam uniformes, mas até parecem usar, pois não consigo lembrar de uma roupa específica apenas de blusas, saias e calças sujas, sempre iguais.
         Vejo três deles comendo algo, enquanto passamos em nossos tanques, devagar. Os três estão com os pés enterrados num lodo da valeta que desfila a céu aberto pelas ruas destruídas, desorganizadas e sujas. Eles não se importam mais com o cheiro, nem com a gente, o que interessa é a comida.
Perto de nossa base, quando paramos, eles vêm em nossa direção. Única oportunidade que alguns deles têm de ver comida fresca.
E quando eu quero dormir, eu fico deitado e penso e não consigo. Nesse momento não tenho medo deles. A base militar é suprida de comida e armas, e temos muitos homens por aqui. Sempre saímos em tanques caminhões ou nos jipes mais modernos. Mas eu tenho medo de que um dia eles venham em grupo e talvez eu tenha que matar. Um homem qualquer, uma criança, uma mulher.
É estranho como não consigo individualizar. São sempre eles, lembro em blocos de gente andando como num cardume. Como numa dança. A dança dos zumbis. Cada movimento em conjunto, coreografado, cada passo da dança tem um significado. O passo inicial é com a cabeça: leve movimento trazendo o olhar até nós. O movimento de cabeça tem a ver com a posição deles: os que estão mais virados para nós mexem menos, os que estão de costas parecem que viram cento e oitenta graus suas cabeças. Depois da virada de cabeça, por atenção, o tronco e os membros superiores se projetam em pulsão. Vejo ali os quereres, os desejos. Nesse ponto eu vejo vida. Me iludo com uma vida. Eles tem quereres como todos nós temos. Quando fixo olhar em um menino ou em uma mulher chego a lembrar da minha mulher e de meu filho, passa em segundos a imagem do encontro na faculdade, o amor, a vida construída a dois, a minha ida para o exército, as mudanças de cidade, o nascimento do meu filho. Qualquer um ali um dia pode ter tido uma vida parecida assim. Mas no terceiro movimento da dança sinto a música grave da orquestra. O suspense, o “algo está errado”, o “algo vai acontecer”. Os quadris voltando-se para nós. Desejo sexual poderia ser, se eles sentissem. Mas representa em mim a mudança de tom. Da lembrança de vida e vivências boas de minha família, sinto o medo por suas dores. Minha morte iminente como provocadora da dor de minha mulher e filho. E eu olho para um guri ou uma mulher e eles já não são. São apenas parte do corpo de dança e executam a coreografia da morte. E os próximos movimentos da dança são de caminhada e de movimentos sempre em nossa direção e com os braços levantados para nós. Coreografia da súplica, coreografia da fome.
Acho que uns quinze anos antes eu tinha visto aquele mesmo povo pela televisão e sempre quis conhecer. Mas aquele que eu quis conhecer não existe mais. Quinze anos atrás eles dançavam outra dança. Eles dançavam e cantavam todos juntos. Sorriam. Eu vi a dança como a marca do povo. Eles dançavam, de uma maneira que a minha gente não faz. Não temos uma dança de vitória, de luta. Mais uma vez, ao tentar lembrar deles naquela época, vejo um grande corpo de baile e a alegria da liberdade. Era a coreografia da liberdade. A mesma coreografia, que quase nos mesmos dias vi Mandela dançar num palanque, por sua liberdade e por chegar com seu povo ao poder.
Quinze anos atrás o povo do Haiti cantava e dançava sua liberdade pela volta do presidente Jean Bertrand Aristide. Agora eles dançam a coreografia do desespero, a coreografia da fome, ao esticar seus braços ao meu amigo tenente Domingues que sempre traz comida para eles.
Sou plateia dessa dança. De cima de um caminhão do exército brasileiro, cheio de armas e comida eu olho e não vejo a dança que eu quis ver. Eu olho e vejo a dança que não quero e me faz ter medo. Eu olho e tenho medo de ter medo e de me deixar disparar. E matar.

sexta-feira, 31 de maio de 2013

O homem que o guri se tornou


Pela fresta da porta. Espia.
O irmão dorme, igualzinho como ele vai fazer em tantos outros momentos, inclusive de tensão e medo. Na verdade, o irmão dorme por estar alheio aos sentimentos de tensão e medo.
Por uns vinte anos mais eles vão dormir no mesmo quarto. E muitas, inúmeras outras noites será assim: o irmão mais velho dorme, despreocupado, o mais novo em vigília, pensa, pensa, teme ou simplesmente não vê o sono chegar.
O guri mais novo, certamente sabia naquele dia, mas esqueceu depois, e foi relembrado ainda mais tarde, de que era um domingo, fim de noite.
O pai e a mãe estavam recostados na cama, assistindo televisão. Também anos mais tarde, vai ser informado que na tevê era exibido um filme de Chaplin, já que isso ele não conseguia ver pela fresta da porta.
Alguma coisa passou na cabeça do guri, mas essa não é uma lembrança que tenha resistido ao tempo, nem é um dos acontecimentos que poderão ser informados anos mais tarde. Ainda assim, alguma ideia, ou conceito, ou imagem, ou palavra (ainda que ele não entendesse que as palavras poderiam ser marcadas em papel), alguma coisa enfim, alguma coisa passou na cabeça do guri.
Pode ser que a criança pense como o adulto pensa no sonho: uma lógica que faz sentido em sonho, mas é ininteligível quando desperto. Alguma coisa devia fazer sentido para o guri, ainda que para o homem que ele se tornou mais tarde qualquer lógica que ele ainda lembrasse (mas já não lembra) pareceria com aquela dos sonhos. Quando o guri resolveu não aparecer na porta, não ir dizer para a mãe e para o pai que não conseguia dormir, ou mesmo quando ele decidiu não ir até o irmão e ficar chamando pra irem brincar juntos, quando o guri fez isso, alguma coisa ele tinha na cabeça.
Se o guri tivesse tido coragem, poderia ter andado pela casa. A casa antiga, daquelas de teto alto, janelas gigantes e portas imensas, tudo isso na perspectiva não só do guri, mas de qualquer adulto. Se o guri tivesse sido impetuoso, poderia ter ido espiar por todas as outras frestas de portas, à procura de um monstro (mas ele não temia, talvez não conhecesse monstros), à procura de fantasmas (com certeza a casa deveria ter um ou dois, ainda que fossem tranquilos) ou mesmo à procura do sono. Se o guri quisesse, poderia ter ido ao banheiro, chegado até a janela de veneziana que havia ali e ficava aberta, janela que dava para o pátio interno onde ficava um algibe (um negócio velho e de nome horrível que não passa de um poço de água). Se o guri fosse corajoso, destemido, curioso, impetuoso, ou mesmo muito idiota, poderia até ter subido no algibe e ter se jogado lá dentro do poço.
Se o guri fosse outra coisa que ele não era, poderia ter feito um monte de outras coisas, inclusive o que fez seu irmão: ter ficado quieto na cama esperando o sono chegar. Mas o guri era o que era e por isso colocou o bracinho pra dentro do quarto do pai e da mãe e deu um tchauzinho. Depois olhou rapidamente pela fresta e viu o pai e a mãe rindo e falando alguma coisa sobre o aparecimento do pequeno braço. O guri se divertiu e fez de novo. E algumas outras vezes. Até esquecer. Esse esquecer é do homem que o guri se tornou. Pois em algum momento o guri se sentou atrás da porta, e dormiu sentado. A prova está lá, em uma fotografia num dos álbuns que a mãe dele ainda guarda. O homem que o guri se tornou ainda brinca com a mãe por ela o ter deixado ali, de pijaminha de short e física, sentado todo torto no tabuão do quarto, enquanto ela ia buscar a máquina fotográfica para a foto. O guri não lembra, mas ele era eu.


domingo, 14 de abril de 2013

Projeto #camadecasal

     Quando a gente está fazendo muitas coisas, e quer continuar fazendo, o ideal é conseguir unir esses fazeres.

          Por isso criei o Projeto #camadecasal que são nanocontos descritivos passados no mesmo espaço (uma cama de casal, "por supuesto"). É só usar #camadecasal no twitter e descrever uma cama de casal. Depois se usa uma segunda hashtag para servir como título. Pode ser citado o @onomondi para que eu possa juntar isso

Já estão sendo preparados vídeos de 6 segundos com o mesmo tema. O projeto é um trabalho de escrita criativa e é também preparatório para o primeiro Balbúrdia de 2013 (Espaço)

Quem quiser escrever o seu (e quem sabe ver sua ideia sendo gravada em vídeo) pode dar uma olhada nas dicas e pseudo-regras abaixo.

     
@onomondi #camadecasal. Espaço. Homem. Mulher. Espaço. #casalnovo
ou
#camadecasal. Homem. Espaço. Espaço. Mulher. #brigadecasal @onomondi

    
   Como o primeiro Balbúrdia será sobre o Espaço, há um trabalho de espaço textual. No exemplo acima a palavra espaço surgiu para criar uma visualização, mas poderia ter sido assim

@onomondi #camadecasal. ____.Homem. Mulher._____  #casalnovo   
ou
@onomondi #camadecasal. Homem._____. ______. Mulher.#brigadecasal

   Inicialmente quis colocar essas regras para deixar mais divertido (ou não). Relembrando:

1. Utilizar descrição. (ou seja, abuse de substantivos, evite verbos);
2. Que se pense a posição textual indicando a posição na cama (como nos exemplos, pode-se pensar que no #brigadecasal o homem está na esquerda, há um grande espaço no meio entre os dois e a mulher está na direita da cama);
3. Mencionar @onomondi (não é totalmente necessário, pois vou procurar pela hashtag)


   Já estão no forno novas temporadas: #camadehospital #camadesolteiro #camadehotel 
   e novas séries.